Uma estrela chamada Rosa Maria

por Sulamita Esteliam

Revirei meus alfarrábios nesta segunda, em busca de fotos mais recentes de você, minha queridíssima amiga-irmã, Rosa Maria da Conceição e Silva, estrela desde 29 de maio. Tentei, mas não consegui fazê-lo antes. Meu emocional e físico andaram em pandarecos na última semana, tomados pela tristeza e por uma virose das brabas. 

Não as tenho. A última que registrei foi em julho de 2002. Peguei-a distraída numa reunião familiar, num sítio em Sete Lagoas. O foco não está lá essas coisas, numa baita contraluz. Além disso, nesse dia, me lembro bem, perdi a lente da minha máquina, embatumada com gordura de churrasco… Nunca mais prestou.

Você está pensativa, algo a chateava, imagino. Segura seu instrumento favorito, a máquina fotográfica. Era sua paixão antes mesmo do bisturi – e a vi manejá-lo com destreza na orelha da minha filha mais velha no consultório -, e das agulhas de acupuntura às quais se dedicaria na maturidade.

Noutra foto, mais nítida, flagrei-a palreando com o filho, Ismael, que herdou de você o amor pela fotografia e pelas letras. Tornou-se coleguinha, meu, não da mãe ou do pai, embora este também seja leitor voraz, e tenha feito Comunicação, jamais exercida profissionalmente.

 

Anos mais tarde, o filho já se dividindo entre as teclas e as lentes, e exercitando o talento em sítio famoso na internet, você confessaria que sua primeira profissão de escolha teria sido Jornalismo. Não se dispôs a enfrentar a oposição familiar, todavia – o que o filho fez, e seu TCC foi sobre Jornalismo de Imersão, ou Jornalismo Gonzo, e Euzinha fui honrada com a primeira leitura.

Curioso é que você, Rosa, que seguia meu blogue e me honrava com comentários vez por outra, me chamava de “nossa Hunter Thompson de saias”. Para quem não sabe, ele é considerado o criador do método de mergulho nas situações, vivenciar as histórias como parte delas, para escrever a respeito.

Fato é que Jornalismo não era coisa para moça de bem, assim como artistas tinham que ter carteirinha da polícia para não se confundirem com prostitutas ou com a malandragem. Imagina, moça de família no exercício da profissão!

Universidade, aliás, não era para nosso bico de pobre. Minha mãe, mesmo se orgulhando da minha trajetória de estudante, obrigou-me a fazer Química Industrial antes de seguir para a faculdade. Pobre, dizia, tem que ter profissão antes de chegar lá.

Minha mãe tinha certa razão. A sobrevivência fala mais alto quando se tem que lutar pela vida. Aí é que entra o Estado como facilitador de oportunidades.

Lula e Dilma, que vêm de estratos sociais diferentes, entenderam muito bem a diferença entre ensinar a pescar e dar o peixe. Travestiram com a expansão universitária e dos institutos de tecnologia, a universalização do Enem, o Pro-Uni e o Fies a meritocracia tosca que a elite tenta nos impingir desde sempre – para nos manter como capachos.

E é isso que faz da educação o cavalo de batalha deste desgoverno delirante e irresponsável.

De minha parte, fiz a vontade da minha mãe: passei na antiga Escola Técnica Federal de Minas Gerais, hoje Cefet, para cursar quimica. Mas dei um jeito de boicotar minha estadia para ficar livre e seguir o que havia traçado para mim. O Jornalismo passou a ser aceito com orgulho pela família. Tanto que fiz escola.

 – Então, escolhi o caminho certo -. brinquei com ela, que deu boas risadas. como sempre fazia ante o meu humor pastelão.

Aliás, foi você quem me contou, e sempre me lembrava, que nasci no Dia do Cinema – da primeira exibição pública dos irmãos Lumière, em 1895. Você é do dia 8, daí também Conceição. Mas algo em nosso mapa do céu a fez água e Euzinha fogo e ventania.

Somos mulheres de dezembro, porém. Gostamos de movimento, de conhecer lugares e pessoas, e se nos recolhemos, melhor deixar quieto. Você viajou o mundo realizando seus sonhos, transformando sua curiosidade em prazer, saciando sua necessidade de luz.

Rosa tinha alma de artista.

Era uma mulher extremamente culta e sensível. Roqueira, amava os Beatles – sobretudo Lennon e McCartney. Admirava Tim Burton e era louca por Johnny Deep. Amava García Lorca e Drummond. Mas cursou Medicina, escolheu Pediatria.

Casou-se com Tarciso, e foi morar em Beagá. Aparou minha terceira filha, e ajudou-me com ela e com o casal mais velho durante muitos anos, numa época em que minha vida se assemelhava a uma montanha russa. Atendia pelo Inamps, depois SUS.

Salvou-me mais de uma vez com suas agulhinhas mágicas. Bastava olhar para mim para saber que eu urgia um socorro. 

Eterna gratidão, querida.

Aposentou-se como servidora da Funasa – Fundação Nacional de Saúde, e retornou a São Paulo. Era pernambucana de origem, nasceu em Paulista. E dizia que terminou fazendo o caminho inverso meu: pernambucaneira que foi, enquanto sigo mineiribucana.

Fui visitá-la em sua casa ano passado, depois das primeiras cirurgias – para retirada de um câncer e para reparos no coração. Estava a trabalho em São Paulo, e ainda bem que fui.

Recebeu-me tranquila, com o indefectível sorriso, e quase provoco um desastre ao abraçá-la, lembra? Não sabia que haviam lhe aberto o peito. Ficou a sensação de ter um passarinho entre os braços, mas não piei.

Estava se submetendo à quimioterapia, e comentou comigo que, provavelmente, teria que voltar ao centro cirúrgico.

– Ninguém merece!

Não, não merece. Demos muita risada neste penúltimo encontro, apesar de tudo. Euzinha, você, Tarciso, suas irmãs Ana e Bete.

No último, não pudemos nos abraçar. Você estava na UTI, iniciando o processo de desmame respiratório. Abriu os olhos quando e toda vez que ouviu minha voz e a de meu companheiro. Estavam vermelhos e brilhantes.

Brinquei assim mesmo, disse que havia chegado para tirá-la da cama.

– Chega de dormir, bora acordar!

Você tentou mover os lábios ainda contidos por um tubo, quando ficamos sozinhas e segurei sua mão inchada pelo processo do soro. Creio que entendi o que gostaria de me dizer. Não verbalizei, entretanto.

Nem sempre funciona, mas às vezes é preciso pedir Misericórdia – da cura ou do livramento. E tenho cumprido esse papel ao longo da minha existência. Certas coisas não se escolhe, mas delas não se foge.

Rosa encantou-se 11 dias após nossa visita. E depois de sete meses de internação, entradas e saídas da UTI. Um padecimento atroz, que enfrentou com serenidade, determinação e galhardia. Não queria ir antes dos 69 anos.

Não pôde ler meu último livro, que o companheiro, meu primo-irmão, pediu que eu dedicasse a você no lançamento em São Paulo. Ismael dos Anjos, seu amado filho, me presenteou com as fotos.

Aproveitou muito pouco o recanto, que escolheu para chamar de seu, com vistas para o mar de Ponta Negra. Agora tem a eternidade.

Sei que está em paz e na luz. Mas como dói!

Sim, importante dizer que fomos boas companheiras de copo, e nossa primeira bebida é uma boa cachacinha, degustada com vagar…

Júlio trouxe um exemplar dos melhores para mim das Gerais. Chegou, exatamente, na tarde do dia do seu encantamento, Rosa. Mas só hoje abrirei a garrafa, em sua homenagem. Cumprimos o costume de beber nossas estrelas encantadas.

Até qualquer dia.  Seguimos aqui no Ayê, enquanto nos é dado. Aproveite o Orun.

 

 

 

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