por Sulamita Esteliam
Deixei de postar nas redes sociais fotos de quitutes que preparo em minha cozinha. Envergonho-me em mostrar o que falta na maioria das mesas dos nativos de Pindorama. Ainda que contribua para campanhas de combate à fome, aqui, ali e acolá.
Fato é que a solidariedade, mesmo organizada, ameniza consciências, mas pode muito pouco na profundeza do fosso que se abriu e continua se aprofundando. Individualmente, esbarramos na falta de alcance.
Não são boas as notícias que nos chegam dos sete cantos do Brasil pandêmico e em desmantelo, infelizmente. Na toada macabra da fome, dançam as chacinas de jovens, meninos e meninas, negros e pobres, indígenas devastados pela ganância.
Crianças são as vítimas preferenciais da miséria. Traduzem a dimensão da tragédia que nos assola: apenas um quarto do futuro do Brasil tem acesso a três refeições diárias – café da manhã, almoço e jantar; eram 75% em 2015, foi de um quinto no ano passado.
Números oficiais do Ministério da Saúde, revelados em reportagem global, que apontam avanço acelerado da fome a partir de 2016.
Durou pouco o sonho do fim da miséria.
Há apenas seis anos havíamos saído do Mapa Mundial da Fome. Não havia pedintes nos sinais, nem crianças vendendo balas ou chicletes na praia ou no trânsito. Nem gente disputando lixo com os bichos, e família inteiras nas gramas do jardim, sob viadutos e pontes.
“Compra só para me ajudar” é um mantra que perfura o coração e alcança o fígado de quem tem olhos para ver, ouvidos para ouvir, coração para sentir e cérebro para pensar.
O cenário é cada dia mais devastador. Colchões e gentes empilhadas nas calçadas e praças, a miséria, a fome, a violência de toda natureza, e quase sempre a repressão, como parceiras cotidianas.
Estão incorporadas à paisagem. No mais das vezes, ignoradas solenemente por seus iguais humanos, a pé ou motorizados. Isso quando não são hostilizados, pura e simplesmente.
Não é apenas a volta da fome e o aumento da população vulnerável. O retrato da desgraceira é estampado por diferentes vias. Explode na miséria oficial.
A esmola voltou a ditar as relações de trocas sociais. Povo bom é povo humilhado, de cabeça baixa, grato pelo prato de comida, pela roupa usada, o sapato gasto, o brinquedo remendado, não raro “em nome de Jesus”.
O escárnio não combina com a lógica. Saco vazio não para em pé. Gente com fome não produz nem consegue rezar. Criança faminta não aprende, mesmo se pode ir à escola.
Já fui criança e adolescente pobre. Minha mãe, viúva, cortava um doze para alimentar a prole de quatro. Passávamos carências, vontades. Carne todos os dias era luxo de que não dispúnhamos. Jamais conhecemos a fome.
A gente tinha onde morar, e cada centímetro vago do terreno era cultivado. Sobravam frutas, que repartíamos com a vizinhança e com quem pedisse. Havia horta e galinhas poedeiras no quintal. E minha mãe aproveitava até a água do macarrão escorrido, à guisa de leite, para fazer bolo.
Talvez por isso tenha me tornado cozinheira especialista em reaproveitamento fada-madrinha da geladeira vazia. Não apenas, mas costumo fazer milagres com quase nada.
É do conhecimento geral da nação que a carência, e não raro a miséria, é velha parceira da brava gente brasileira. Condenada que foi, desde antanho, a se esforçar pelo que lhe é de direito.
A fatia do bolo cresce sob seu empenho, mas o parte e reparte nunca lhe destina o melhor naco. E há quem estufe o peito e diga que o pouco ou nada que tem é fruto do suor do seu rosto. Verdade. E as burras do patrão agradecem.
Os estômagos do capital transbordam excessos, e a insensibilidade é o ingrediente principal desse vômito.
Vêm-me à memória Carolina de Jesus e seu Quarto de Despejo. Em 1958, ela escrevia: “… O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no proximo. E nas crianças.” (SIC)
E alertava: “… O que eu aviso aos pretendentes a política, é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para descrevê-la.” (SIC)
Ninguém pode naturalizar essa dor. Uma dor que cobra vidas. Milhares de caixõezinhos brancos produzidos pela desnutrição: sobe de 3 mil só este ano, até setembro.
Uma dor que desnuda a esperança de civilidade nesta terra que já se cantou como das oportunidades, compatriotas que somos de Deus. Abriram a Caixa de Pandora, urge fechá-la, mas a dobradiça emperrou.
A trôpega democracia que alcançamos já é lenda distante, como o mito que corporifica a desgraceira ampla, que se explica na definição lapidar do pesquisador do Ipea, Sandro Pereira da Silva:
“O acesso à alimentação é precário porque o acesso ao mercado de trabalho é precário, e isso acontece porque o acesso à educação é precário, e assim por diante… É um encadeamento de precariedades que, no final, leva à insegurança alimentar.”
Insegurança alimentar é eufemismo para fome. E a fome é das piores das violências com o ser o humano. No Brasil de hoje, reinserido no mapa da fome mundial, come quem pode.
Políticas públicas tornaram-se miragem. E a solidariedade não alcança a escalada da miséria. Só a mão do Estado, que não dispensa ajuda do Todo Poderoso, salva.
Em tempo: Tenho navegado na toada do espírito. Quando desanuvia, escrevo. Grata por compreender
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