Carta ao meu reacinha preferido

Olha o nivel dos patriotas
Olha o nível dos patriotas no Recife
por Sulamita Esteliam

Não estou sendo original, alguém já escreveu isso antes, li nas redes sociais. Afinal, todo mundo que se preza tem ao menos uma reaça de carteirinha na família. A nossa, como é exponencial – em tamanho e qualidade -, tem pelo menos duas dúzias.

Mas você, de fato, é o meu reacinha predileto. Adoooro quando, mesmo à distância, você troca a habitual cordialidade, perde as estribeiras, em letras garrafais, para tentar fazer valer sua opinião.

Assim, neste domingo de sol, aqui no Recife e Nordeste afora, e chuva nas plagas do Sudeste, em que patriotas de ocasião celebram o avanço da marcha rumo ao golpe de Estado, lembrei-me, irremediavelmente, de você.

a realidadeea arte
A vida imita a arte, não só em Copacabana
O fantasma do comunismo ainda reina
O fantasma do comunismo ainda reina na Paulista

Viu os guarda-chuvas de grife, amarelo e verdes na Avenida Atlântica? Um luxo só. E a quantidade de carrinhos de bebês, devidamente empurrados por babás uniformizadas, negras. Curioso como a arte, muitas vezes, antecipa à vida. É real.

Em Copacabana, o casal vestia a camisa do Flamengo estilizada em verde e amarelo; completava a cena uma babá empurrando o carrinho duplo, onde crianças branquinhas também envergavam camisas verde-amarelas. Como na charge que correu as redes no dia anterior.

Traduz a realidade do Brasil que eles querem de volta, sem os empecilhos das leis que os obrigam a reconhecer o direito dos trabalhadores que lhes servem. Valem-se da arrogância que parece ser a marca também da classe média que tudo faz para integrar a casa-grande. Ser aceita, eis a questão.

Veio-me a memória dos comícios pelas diretas-já, quando levava minhas crianças, uma delas ainda bebê, passeatas afora; eu empurrava o carrinho. Naquele tempo, a multidão ia às ruas exigir o direito de escolher os governantes, o retorno à democracia.

Os manifestantes deste domingo, a exemplo do que vem ocorrendo desde o ano passado, criminalizam a política e querem apear do poder uma presidenta legitimamente eleita. E contra a qual não pesa qualquer delito que justifique o impedimento, a não ser ter feito concessões ao inimigo.

Enchem a boca para falar de meritocracia, mas não reconhecem o símbolo da pessoa que se fez por seus próprios méritos – de retirante da seca e da fome a presidente da República por duas vezes. O homem que enfrentou e ajudou a desmontar a ditadura, liderando greves em desobediência civil, que perdeu três eleições presidenciais e se recolheu para recompor sua base até conseguir chegar lá.

Um presidente que recuperou a autoestima de um país, olhou para sua gente mais necessitada, retirou milhões da miséria, levou milhares à universidade, e favoreceu centenas a estudarem no exterior.

Um homem que, por isso, fez sua sucessora, que, por sua vez, conseguiu se reeleger – a despeito da campanha suja que lhe moviam e lhe movem desde então.

Um homem que acumula títulos de doutor honoris causa mundo afora, ele que não teve oportunidade de estudar além do curso de torneiro mecânico no Senai.

É esse homem que é tratado como escória por parte da gente que deveria tê-lo como exemplo a ser seguido.  Querem nivelá-lo a um reles “ladrão de galinhas”.

O que mais espanta, em particular, é que tal atitude parta de gente que, como nós, vimos de famílias simples, de ancestrais lavradores, negros e analfabetos, de pais e mães que se esforçaram para se letrarem, mas não puderam ir além do primário, se tanto. Nós que fomos os primeiros universitários de uma família diversa e de diferentes gerações, e que só depois dos 30 pudemos votar para presidente.

Como nos colocarmos contra a promoção dos direitos fundamentais de cidadania, à oportunidade que dignifica?

Nem falo da hipocrisia moral que impera, quando bem sabemos que a correção não é exatamente o que norteia procedimentos, em particular, com a coisa pública.

Faz tempo não batemos papo, não é verdade? O diálogo ficou quase impossível de uns tempos para cá – para além das tiradas infames que você me assopra nos ouvidos, sempre que nos encontramos. Saio pela tangente, porque, quando acontece estamos em reuniões familiares, e tendo a não ser estraga prazeres.

Sempre me garanti, assim, do jeito que eu sou.

Na verdade, faz tempo, vivemos em lados diametralmente opostos do espectro político-social. E a delicadeza não tem sido o combustível a mover conversas em torno de…

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O sorriso não durou muito. Aécio, Alckimin, Mendonça, Agripino e Cia foram literalmente expulsos da Paulista

Todavia, confesso que não me acostumo à ideia de ter alguém que eu gosto se afinando, já nem digo com o Farol da Alexandria, cuja arrogância também anda gagá, mas com Bolsonaros, Aécios, Agripininos, Serras, Paulinhos, Sampaios, Mendoncinhas, Jarbas e milhões de Cunhas.  Há de reconhecer que tem andado em péssima companhia.

E o ladrão é o “pixuleco”, e a incompetente é a Dilma?

Tá bom, você pode dizer tudo exatamente o contrário. É a narrativa corrente. Mas precisa provar.

Aliás, você viu a cara de desespero do Mendoncinha, Ah, é sim!, Alckimin e Cia, quando a turba os expulsou na Paulista? Sobrou para a Marta, PMDB desde criancinha… Quem nasceu para poodle não se mete a Jararaca.

Desculpe-me, mas não resisto. Junto o vídeo:

 

 

Quem mandou dar-se à ousadia de se achar líder, convocar a horda e acreditar que tem algum controle sobre ela …! Quem manda na pauliceia desvairada é a extrema-direita. Lascou-se!

Ou será que tinha infiltrado em São Paulo?

Aqui no Recife, li no noticiário, o Jarbas, que também enfrentou a ditadura, pregou o impeachment à vontade, nem se avexou, sequer foi incomodado por seus pares. Quem sai aos seus não degenera.

Até trump
O eterno complexo de vira-latas

Sim, claro que manifestar é um direito sagrado na democracia. Acatar a vontade das urnas também é. Do mesmo modo que a Constituição deveria ser a garantia de que todos são iguais perante a lei. A Carta Magna deveria ser sagrada por que berço da cidadania, não lhe parece?

Então, por que querem botar abaixo um governo eleito segundo as regras vigentes, golpeando a democracia?

Por que tornar herói um juiz que se comporta como verdugo, à revelia da lei que deveria fazer valer? E se fosse com seu pai, sua mãe, sua irmã, seu filho, sua filha. Não se iluda, o estado de exceção não assegura imunidade a senhor ninguém.

Não estou sozinha nessa interpretação, você sabe. Muito pelo contrário.

Daí que me abstive de ir à praia para a caminhada neste domingo. Tenho o direito de não querer ser confundida.

Meu dia de ir para a rua, em defesa da legalidade, da Democracia, do Estado democrático de direito, é  dia 18, manifestação convocada pela Frente Brasil Popular.  É dia de povão, e é com esses que me afino. Vamos todos para o Pina,  simbolicamente, bem na entrada de Brasília Teimosa.

Já lhe contei a história do lugar? Vale a pena conhecer.

É uma Zeis – Zona Especial de Interesse Social, conquistada pela população que ocupou o local a beira mar, de nome Areal Novo, em fins dos anos 40. Bem junto ao Iate Clube, imagina!  A gente humilde, famílias de pescadores, basicamente, resistiu a várias tentativas de expulsão através dos tempos, inclusive a dois incêndios misteriosos.

Do ponto da localidade que beira o estuário, o encontro dos rios Pina, Beberibe e Capibaribe com o mar, é possível avistar o Cais José Estelita, em litígio pelas forças populares e as empreiteiras; também a zona portuária e o Marco Zero, no Recife Antigo.

Os governos derrubavam durante o dia, e eles reconstruíam à noite.

Em 1956, quando JK tomou posse, cinco pescadores do Recife aportaram no Rio de Janeiro. Foram de jangada, saudar o novo presidente da República e chamar a atenção para sua luta.

Quando Juscelino construiu Brasilia, juntaram uma coisa com a outra e resultou Brasília Teimosa.

De promessa em promessa, cinco décadas depois, o projeto de urbanização do local, traçado pela comunidade e apelidado de Teimosinho, foi efetivado somente em 2004.

Uma parceria da Prefeitura do Recife, à época sob o comando de João Paulo (PT), com o Governo Federal, na primeira gestão Lula. Correram mundo as fotos do presidente da República visitando os barracos nas palafitas. Cerca de 500 famílias foram removidas, 400 delas para um conjunto habitacional no Cordeiro, Zona Oeste da cidade.

O local foi revitalizado. Abriu-se uma avenida, Brasília Formosa, e criou-se uma praia artificial junto ao muro de arrimo dos arrecifes, ergueram-se área para prática de esportes e quiosques de alvenaria para o comércio de peixes e frutos do mar. Lula veio também para a inauguração.

Hei Hitler
Hei, Bolsonaro!

Mas voltemos ao domingo, é dia de praia, sabe como é. É quando a gente que rala pelo pão nosso de cada dia traz a família para um banho de mar, toma sua cerveja, um caldinho, come um salsichão, um cachorro quente, um camarão no bafo, um pastel, um espeto de coxinha, ôpa …! O menu é amplo, e a areia é espaço democrático.

A gente bem-nascida, ou candidata à ascensão, não costuma frequentar “a farofa” – tem casa na praia, outras praias – diferenciadas. Mas aporta por aqui para protestar “contra corrupção”. Vestida de verde-amarelo, a maioria com camisa da CBF, esse exemplo de honradez da Terra Brazilis. Muitos carregavam seus amados “pixulecos”, bônus pelos 20 reais que doaram para o sucesso da festa.

Conferi o primeiro protesto, há hum ano, mesmo nauseada. Desta feita, vi pela TV e pela internet. Faixas com dizeres, bem ao nível da educação-cidadã que julgam ter, mas abstêm-se de colocar em prática, chamam a atenção.

A presidenta da República, Dilma Roussef, que querem apear do cargo que lhe foi concedido por mais da metade dos eleitores brasileiros, como reza a Constituição, também foi brindada com bonecas infláveis, mascaradas como “metralha-petralha”.

Dá dor na alma ouvir a multidão que pede o golpe e canta o Hino Nacional.

E a mídia venal, o PIG, assevera que em todos os locais “as manifestações foram pacíficas”.

Curioso é que essa gente, que deixa o pudor em casa – se é que ainda o têm – só pode fazer isso porque mulheres como Dilma Roussef, e homens que sonharam com um Brasil melhor, amargaram cadeia, padeceram tortura e exílio. “Terroristas” que garantiram a liberdade de expressão que hoje desfrutamos.

Naquele tempo, sob os coturnos, não nos era dado a chance de discordar. Nós éramos crianças, mas vivemos para conhecer o incômodo da mordaça, e participar dos movimentos que nos trouxeram a democratização. Dilma é uma das que sobreviveram. Centenas ficaram pelo caminho, e deles não se tem notícia até hoje.

Isso foi há 50 anos. Será que sua memória, e de outros da nossa geração que pensam como você, se perdeu? Será que essa gente jovem, bonita, com o corpo malhado em academias, que toma suplementos importados, não estuda História, não alimenta o cérebro?

Lá pelas nove da manhã, podia-se ouvir o barulho dos apitos e vuvuzelas trazidos pela brisa, e o alarido das buzinas, tão comuns dessa gente que teima em achar que elas solucionam todo e qualquer problema de tráfego.  Lá pelas dez, um carro de som convocava insistentemente para a manifestação.

Pouco depois das onze, um foguetório indicou o começo do espetáculo, e o silêncio se fez. O ponto de partida foi o mesmo do protesto de março do ano passado, a partir do ponto em frente à tradicional padaria da orla, cerca de 600 metros do rumo onde moro. A caminhada se daria na direção contrária, rumo ao vizinho Pina, o que poupou meus ouvidos.

Nas contas da PM, que aqui calcula conforme o freguês, ao final, teriam sido 120 mil pessoas no trecho da beira-mar equivalente a três quilômetros. Quer dizer, se é verdade, não houve espaço para caminhada.

Os movimentos espetaculares das últimas semanas, manipulados e amplificados pela mídia venal cumpriram seu propósito. As manifestações foram massivas.

Teriam sido 500 mil em São Paulo, segundo o DataFolha (1,4 milhão, segundo o governo paulista);  falam de 100 mil a um milhão no Rio de Janeiro, 100 mil em Brasília,  160 mil em Curitiba, 30 mil em Belo Horizonte, 20 mil em Salvador. Considerando-se corretos os números semi-oficiais, ainda não se chega ao milhão que estiveram na Praça da Sé, em São Paulo, no maior comícios pelas diretas. E mesmo assim ainda levamos cinco anos até conseguir votar para presidente.

Paro por aqui.

Aonde nós vamos parar depois de tudo? Não sou do tipo que se deixa roubar a esperança.

Felizmente, tenho companhia para navegar. Ditadura, nunca mais.

Transfiro a saudação que, outro dia, um chegado nosso, recém-convertido ao meu perfil me deixou no Twitter: “Que os deuses do Olimpo sejam generosos com você…” .

Corrijo, conosco.

 

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Postagem revista e atualizada às 10:12: correção de erros de digitação em diferentes parágrafos, e novamente às 11:28.

 

 

 

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