por Sulamita Esteliam
Transcrevo informações do Blog do Sakamoto: contrariando voto do relator, desembargador Cândido Ribeiro, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região anula o julgamento do produtor rural e político Antério Mânica, acusado de ser um dos mandantes da Chacina de Unaí, em 2004.
Deu-se na segunda-feira 19. Os desembargadores Néviton Guedes e Olindo Menezes alegam falta de provas e falhas no julgamento para anulá-lo parcialmente.
O crime aconteceu em 2004, foi a júri em 2015. a condenação aconteceu geral, determinando Antério e seu irmão Norberto como mandantes. Eles recorreram em liberdade.
Agora, o principal condenado se livra da sentença de 100 anos de prisão por crime quádruplo de homicídio, triplamente qualificado – por motivo torpe, mediante pagamento de recompensa em dinheiro e sem possibilidade de defesa das vítimas.
Quer dizer, a Justiça, até quando é célere – levou apenas três anos para julgar o recurso – consegue ser cega. Ou vesga: enxerga apenas o que se lhe interessa, e quase sempre com o viés que beneficia os poderosos.
Os Mânica são o poder político e econômico no município do Noroeste mineiro. Para se ter ideia, no ano da matança, Antério foi eleito prefeito pelo PSDB com 72,37% dos votos, e reeleito em 2008.
Seu irmão, também grande produtor de feijão, foi condenado a 98 anos e seis meses de prisão e agora tem sua pena reduzida a 65 anos.
Registrou em cartório a confissão de que mandou, sim, matar, “apenas um ‘dos quatro fiscais” executados na chacina. Isso para livrar a cara do irmão. Pois conseguiu, a despeito de a “informação” só ter aparecido agora, 14 anos após o crime.
As famílias das vítimas e o Ministério Público, naturalmente, vão recorrer da decisão.
Leonardo Sakamoto anota a fala de Rosa Maria Jorge, vice-presidente do Sinait – Sindicato dos Auditores Fiscais do Trabalho, presidente ao julgamento:
“As provas são robustas e claras quanto à participação de Antério Mânica. Para nós, que esperamos justiça há quase 15 anos, foi uma grande frustração. Esperávamos hoje encerrar esse triste capítulo de nossa história”, afirmou Rosa Maria Jorge, vice-presidente do Sindicato dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), que acompanhou o julgamento.
Os pistoleiros e os intermediários também tiveram a pensa reduzida. O contratantes dos matadores, vulgo “Chico Pinheiro”, morreu antes de ser julgado.
Três fiscais do Trabalho e o motorista da equipe foram executados na chacina: Erastótenes de Almeida Gonçalves, Nelson José da Silva, João Batista Soares Lages morreram na hora; o motorista Ailton Pereira de Oliveira, baleado conseguiu fugir até a estrada principal, onde foi socorrido, mas acabou morrendo no Hospital de Base de Brasília.
Teve tempo, porém, de descrever a emboscada: homens fortemente armados desceram de um automóvel que bloqueara o carro da equipe e fuzilaram os fiscais.
O caso repercutiu nacional e internacionalmente.
O inquérito chegou à Justiça seis meses depois do crime. A Polícia Federal afirma que a motivação foi o incômodo provocado pelas insistentes multas impostas pelos auditores. Nelson José da Silva seria o alvo principal. Ele já havia aplicado cerca de R$ 2 milhões em infrações à fazenda dos Mânica por descumprimento de leis trabalhistas.
Os pistoleiros envolvidos são: Erinaldo de Vasconcelos Silva (o Júnior), Rogério Alan Rocha Rios e William Gomes de Miranda; o contratante dos matadores, Francisco Élder Pinheiro (conhecido como “Chico Pinheiro”) e os intermediários Humberto Ribeiro dos Santos, Hugo Alves Pimenta e José Alberto de Castro.

Transcrevo importantes observações de Leonardo Sakamoto. Não custa lembrar que o jornalista e professor da área é também cientista político, diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão:
“A história desse caso se confunde com a história recente do combate à escravidão contemporânea no país, apesar dos quatro não estarem fiscalizando esse tipo de exploração no momento de sua morte. Tanto que o 28 de janeiro tornou-se, desde 2009, o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.
Em 2004, a votação em primeiro turno, na Câmara dos Deputados, da Proposta de Emenda Constitucional que prevê o confisco de propriedades flagradas com escravos e sua destinação à reforma agrária ou a programas de habitação urbanos, ocorreu sob a forte comoção pública gerada pelo assassinato dos quatro. Isso pressionou a decisão dos deputados, que aprovaram o texto. Mas quando o sangue dos quatro esfriou, muitos ruralistas sentiram-se confortáveis para protelar a aprovação da PEC, cujo trâmite – entre a segunda aprovação na Câmara e outras duas no Senado – levou mais dez anos. A Emenda Constitucional 81/2014 foi aprovada, mas aguarda regulamentação. O presidente eleito Jair Bolsonaro incluiu, em seu programa de governo, uma proposta para revogar essa lei de combate à escravidão.
Mesmo após vinculado à chacina, Antério foi eleito prefeito de Unaí, em 2004, com 72,37% dos votos válidos. E reeleito em 2008. Em novembro de 2008, chegou a ser um dos condecorados com a Medalha da Ordem do Mérito Legislativo, em cerimônia promovida pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais, realizada no Palácio das Artes e “aplaudida por mais de mil convidados”, como explicou o site da própria instituição. O prêmio, que foi considerado por muitos como um desagravo, gerou indignação e mal-estar em parte da sociedade civil e dos deputados mineiros.
A impressão que fica neste o caso da Chacina de Unaí é de que a velocidade de funcionamento da Justiça sempre depende de quem é o réu. O ritmo será ditado pelo tamanho de seu poder político e econômico: será rápido, se ele quiser que seja rápido, ou lento, se quiser que seja lento, por mais boa vontade e dedicação tenham alguns promotores, procuradores e magistrados. Após quase 15 anos, os desdobramentos da Chacina de Unaí mostram uma Justiça agridoce até aqui, sem que os mandantes esteja presos. Um sabor, como sabemos, bem brasileiro.
A importância da conclusão dos julgamentos de Unaí não é apenas a garantia de que os envolvidos naquele crime sejam devidamente punidos. Ele é uma trincheira cavada para mostrar que o Estado brasileiro não pode permitir que ricos e poderosos passem por cima tanto dos mais vulneráveis quanto daqueles que tentam garantir a eles um mínimo de dignidade.
Ainda mais em um momento em que o próprio presidente eleito e membros de seu futuro governo vêm à público reclamar da ”indústria das multas” da fiscalização trabalhista e ambiental. Mas não comenta da situação muitas vezes deplorável em que o trabalhador é encontrado ou da dilapidação do patrimônio público e da qualidade de vida coletiva, razão para a multa existir.
Quantas histórias como as de Eldorado dos Carajás, Corumbiara, Vigário Geral, Candelária, Carandiru e Pau D’Arco estão esperando para acontecer a partir do ano que vem, quando uma minoria inconsequente de ruralistas e policiais sentirem que tem o caminho livre para fazer o que quiserem?
Quantos fiscais do trabalho ou ambientais, que incomodam com suas multas, como Nelson incomodava Norberto, existem por aí esperando para morrer?”
Clique para ler a íntegra da matéria: Chacina de Unaí: Impunidade incentiva mais violência contra trabalhadores…
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- Postagem revista e atualizada dis 21.11.2018, às 7:46hs, hora do Recife: correção do percentual de votos de Mânica, no quinto parágrafo. Com minhas desculpas.